quinta-feira, 12 de março de 2009

A interação música/teatro: sugestões para uma abordagem a partir da ópera

Didier Guigue, UFPB/CNPQ

A interação do som com o gesto, a imagem e a palavra envolve questões técnicas e estéticas muito amplas e multidisciplinares que não vou poder, nem teria competência, para sintetizar agora. Como compositor, vou abordar rapidamente a interação música/palavra. Até o Séc. XVI, palavra, música e gesto eram parceiros indissociáveis de uma modalidade de expressão artística única, sintética, isto, desde os primórdios da civilização. A partir do Renascimento (a grosso modo), começou a acontecer, no ocidente — mas não no oriente —, uma fragmentação e um processo de independência relativa da palavra, do gesto e da música, que deram origem aos gêneros autônomos de expressão que conhecemos, o teatro falado, o balê e a música pura.No teatro, começou um longo processo durante o qual os atores deixaram progressivamente de ritmar e entoar os textos poéticos de forma musical, ou para-musical, como o faziam desde a antigüidade greca, para aos poucos, vir a se expressar no palco como falam dentro de casa. Também a estreita colaboração e interação ativa entre autores e compositores de teatro — Shakespeare e Purcell, Molière e Charpentier, para lembrar as parcerias clássicas mais inesquecíveis — aos poucos degradou-se no decorrer dos séculos XVIII e XIX. Por outro lado, ficou herético incluir a verbalidade, o texto poético falado ou cantado, num balê ou numa sinfonia.O que não impediu que a forma sintética original, mãe de todas as demais, permanecesse até os nossos dias, sob o rótulo de “ópera”, palavra latina que significa “obra”, simplesmente. Maior expressão de várias culturas — japonesa, chinesa, e também europea até o início do nosso século — , sempre com grande impacto social, a ópera é um meta-gênero de expressão de ordem teatral que permanece hoje em dia mais vivo do que nunca. Eu vou ligeiramente lembrar algumas das estratégias de interação texto/música na ópera para chamar a atenção dos estudiosos de teatro sobre a importância de se estudar esta forma de expressão cênica, quando se quer debater a questão da função da música no teatro.Como lembrei, na Grecia antiga, na China, no Japão, o ator não fala , e a música não acompanha: a forma de enunciar o texto poético o musicaliza. Esta musicalização resulta numa des-realização da fala, afastando-a, e muito, da fala natural. É possível que a finalidade original desta des-realização tenha sido vista como uma forma de ilustrar a distância entre o comum dos mortais que somos (que o público é) e os deuses e semi-deuses que povoam o teatro antigo e clássico (incluindo aí também a opera seria). Em todo caso, ela tem como principal conseqüência a introdução de uma rítmica e de uma entoação que aproxima o texto falado de uma melodia. Isto resultará, a grosso modo a partir do Séc. XVIII, com Lully na França, numa sistemização artística que será introduzida na ópera, com o nome de recitativo secco. Neste, a geração da linha melódica está inteiramente produzida através da aplicação de regras visando a reprodução musical das inflexões do texto como se este fosse falado, só que de forma estilizada. Esta estilização é que constitui a passarela para a des-realização da qual estou falando. Mas ao mesmo tempo, o rigor das regras de transdução do texto falado para o texto cantado justificam por sí só a música, pelo menos aos olhos dos contemporâneos. Ou seja, na ópera clássica tal como idealizada por Lully, a música não precisava ser inventada, ela era induzida pelo texto poético, pela sua entoação falada, bem como pelas situacões emocionais, dramáticas, gestuais e visuais provocadas pelas peripécias do roteiro, e as correspondentes convenções musicais então vigentes.
Exemplo I : Purcell: Monólogo de Dido. Dido está morrendo e sabe disto, e anuncia isto a sua confidente, Belinda: “Tua mão, Belinda, as trevas ocultam-me a luz; no teu peito deixa-me repousar; eu queria mais, porém a Morte está me levando; a Morte está agora bem vinda”. Observam como a linha melódica da voz procura simbolizar a chegada suave da morte, a pessoa definhando. Observam também a sobriedade minimalista do acompanhamento. No recitativo, o que interessa é tão somente a musicalização vocal do texto poético.
O romantismo alemão do sec XIX foi mais longe nesta interação. Os românticos alemães entendiam por ópera « uma obra de arte completa em si (abgeschlossenes Kunstwerk), na qual todas as contribuições trazidas pelas diversas artes envolvidas desaparecem no processo de fusão e concorrem para a definição de um universo inteiramente novo » (C. M. von Weber, sobre a ópera de E. T. A. Hoffmann, “Undine” ). O projeto de “obra de arte total” de Wagner constituíu na época a mais radical realização do ideal romântico da síntese de todas as artes. Ele próprio autor dos argumentos, libretos, música e cenografia das suas obras, ele chegou também a projetar um espaço próprio e exclusivo para a representação das mesmas — o famoso teatro de Bayreuth. Dito de forma muito superficial, a cada personagem, sentimento, situação dramática, etc, corresponde alguma entidade sonora, chamada leitmotiv, constituída de uma combinação de melodia, harmonia, rítmo, timbres instrumentais, etc. Sendo assim, estamos diante do mesmo ideal que o do clássico Lully: uma vez determinados estes leitmotiven, as seqüências musicais não precisam ser “inventadas” ab abstracto, elas decorrem das peripécias do roteiro.
Exemplo II: Wagner: Transfiguração de Isolde apos a morte de Tristão. Já que, ao inves de Dido, trata-se aqui de uma subida, observam como a progressão sonora é crescente.
A problemática da tradução musical de um texto escrito permeia toda a criação operística do nosso século. Schoenberg e Berg desenvolveram a bem conhecida técnica do Sprechgesang , o “canto falado”. Aí, o cantor/ator recita o texto seguindo os contornos aproximados de uma melodia indicada, porém com uma colocação da voz mas perto da fala que do canto. O que por sinal é muito difícil de realizar na prática, pois para estes papeis são contratados normalmente cantores, os quais já possuem uma técnica vocal da qual é difícil se desfazer, enquanto deveriam ser contratados atores com noção de música e de canto, o que é igualmente difícil hoje em dia!
Exemplo III: Schoenberg : Pierrot Lunaire, “Bébado de Lua”. Um série de pequenos melodramas para uma atriz cantora e conjunto instrumental, inspirado no personagem de Pierrot e nos poemas de Giraud. O poema “Bébado de Lua”, por exemplo, na tradução de Augusto de Campos, diz: “O vinho que meus olhos sorvem A Lua veste em longas ondas Que numa enorme enchente solvem Os mudos horizontes... O poeta no silêncio absorbe Absinto snatamente absorve E o céu é seu até que cai...”.
No período recente os meios tecnológicos eletrônicos contribuem para novas soluções de síntese. Por meio de técnicas de digitalização e síntese cruzada, por exemplo, as interações texto/palavra/voz/som/música podem ser experimentadas em todos os níveis, inclusive os mais profundos, o dos fonemas. Isto produz, nos melhores casos, uma meta-linguagem onde a dicotomia clássica desapareceu, reencontrando, ainda que inconscientemente, a prática teatral sintética da antigüidade . A obra “Different Trains” do norte-americano Steve Reich, que evoca a exterminação e o êxodo judeu, constitui, se for preciso, a prova da vitalidade e do êxito estético da ópera.Com exceção das experimentações de Gerald Thomas alguns anos atrás — a opera seca —, não conheço muito envolvimento no Brasil com a criação contemporânea operística (embora o Rio de Janeiro tenha sido até os anos 50 um dos grandes centros latino-americanos de difusão da ópera tradicional). Da mesma forma, o papel da música e da sonoplastia no teatro me parece relativamente pouco discutido, como se a sua função fosse óbvia e dispensasse estudos, comentários, críticas. Curioso é constatar que o mesmo não acontece com o cinema, onde esta interação tem sido bastante bem teorizada. Talvez uma teorização similar no teatro esbarre na necessidade de se dominar elementos técnicos específicos que não costumam mais fazer parte, até onde eu sei, nem da formação do autor de teatro, nem da do crítico, nem da do teatrólogo. Assim se perde o domínio crítico e construtivo de uma dimensão fundamental da expressão cênica. Neste contexto, seria interessante que as problemáticas intrínsecas da ópera estejam mais sistematicamente analizadas no meio teatral, pois a ópera é o lugar, o palco onde se fundem texto, imagem, gesto e som e, conseqüentemente, onde se pode estudar in loco, através dos inúmeros problemas e soluções encontrados pelos autores e compositores no decorrer da história, a interação completa dessas diversas artes.

Um comentário:

Didier Guigue disse...

Oi Sandra

Eu sou Didier, o autor deste texto. Gostaria de saber de onde "puxou" ele,porque eu não sabia que tiha sido publicado em algum lugar, embora lembro tê-lo proposta a uma revista de teatro, ou coisa do tipo. Agradeço informações sobre a fonte. Obs: Não estou incomodado que o tenha publicado, pelo contrário.
Beijos
Didier